««« As chamas que vão consumindo a floresta de Oleiros, no
distrito de Castelo Branco, puseram esta quinta-feira a aldeia de Orvalho em
alvoroço, com a população a acreditar que o fogo é mais um empurrão para as
pessoas abandonarem o interior do país.
"Parece que querem correr com a gente, que querem que as
pessoas saiam do interior do país", desabafa Jorge Marques, artista
plástico que trocou este ano Lisboa pela aldeia de Orvalho, à procura de calma
e de uma maior proximidade com a natureza. »»»
Isto começa a parecer demasiado óbvio. Eu há que tempos que o digo. E continuo
a dizer. Exista ou não uma vontade deliberada — traduzida ou não em actos capazes
de acelerar o processo, por parte de pessoas ou entidades interessadas —, haverá
sempre quem beneficie da desertificação acelerada do interior. A queima
extensiva do território não pode deixar de contribuir para isso.
Prometem-se
reformas, mas, das duas uma: ou as reformas são feitas com as pessoas que vivem
no terreno ou são feitas unilateralmente por parte de alguma entidade que pode, ou não, ser o Estado, mas certamente sob a sua supervisão ou conivência. O que
parece mais provável é que vingue a segunda hipótese.
A população das zonas atingidas pelos fogos é constituída
maioritariamente por pessoas idosas (em muitos lugares quase exclusivamente),
que vão paulatina e naturalmente desaparecendo, e não se vê que haja movimentos
migratórios capazes de as substituir. Mesmo o regresso de uma parte dos
migrantes que fizeram a sua vida activa noutras regiões é apenas uma forma de
adiar o despovoamento total: são quase idosos, a partir dos 60 anos de idade,
que vão eventualmente dedicar-se a uma agricultura de entretenimento, nem
sequer de subsistência. Vão usar o dinheiro das suas reformas para dar uma suposta
continuidade à vida dos seus pais, mas apenas isso. É apenas saudosismo e
actividade lúdica (até porque parece mal ficar todo o dia em casa ou na taberna
local, se ainda existir…) Podem construir umas vivendas com as poupanças
acumuladas, adquirir mais umas parcelas de terreno para juntar àquelas que
herdaram, comprar uns tractores e alfaias, adiando por 15, quando muito 20
anos, o abandono definitivo das terras. Pode até acontecer que as gerações
seguintes façam uma surpresa regressando em força, mas de momento não é isso o
que se vê. Em todo o caso, a julgar pela aldeia onde nasci — que se enquadra
muito bem neste retrato —, os terrenos que há 20-30 anos ainda estavam
cultivados encontram-se agora totalmente abandonados, cheios de mato e em grande parte nem
sequer florestados. Muitos dos reformados já perceberam que o esforço não lhes ia
compensar e que talvez não fosse o regresso à agricultura a melhor maneira de
gastarem as suas prestações mensais.
Alguns, entretanto, plantaram eucaliptos, tanto quanto lhes foi permitido. Mas,
como periodicamente as matas são consumidas pelo fogo antes de darem o esperado
proveito, os proprietários vão desistindo, cansados. Um dia aparecem por aqui
uns representantes de certas empresas ou grupos industriais com propostas para
a aquisição de terrenos. Vão comprando e depois plantam eucalipto, que é o mais
rentável no curto prazo. Isso já aconteceu no passado, quando essas empresas
compraram pequenas courelas e as juntaram em parcelas de 50 hectares, condição
necessária para que a plantação fosse, na altura, financiada pelo Banco Mundial
(recorde-se que é uma instituição das Nações Unidas).
Nada indica que esta estratégia global de florestação em grande
escala com espécies de rendimento rápido (leia-se eucalipto) esteja a ser
revertida e seria até ingenuidade ou mesmo idiotice acreditar que tal fosse
possível no momento político actual. A legislação que suspende o aumento da área
plantada é meramente temporária. Quando chegar um ciclo político de sinal
contrário, ela será revertida, se é que alguma vez chegará a produzir
efeito.
As tiradas poéticas dos que julgam possível travar o processo de desertificação
não passam disso mesmo: são poesia, frases bonitas para aquecer o coração e
alimentar saudades. Estas terras não têm a capacidade de sustentar uma
população com base na agricultura, porque simplesmente elas não têm qualquer
capacidade agrícola. A agricultura, como qualquer outra actividade económica,
precisa de ser sustentável. E isso, nos tempos que correm, não tem nenhum outro
significado senão o de serem capazes de se pagarem a si próprias e, se
possível, gerarem algumas mais valias. Se alguém considera agricultura aquilo
que fazem os reformados quando se esforçam por arremedar aquilo que faziam os
seus pais e os seus avós… Essa "agricultura" não foi capaz de os
sustentar. Empurrou-os daqui para fora. O êxodo rural começou já há muitos
anos. O regresso parcial é apenas uma forma de criar a ilusão de que pode ser
revertido.
Bem sei que este discurso é inconveniente, especialmente para os políticos
locais, que precisam de votos para se
manterem nos seus lugares cada vez mais esvaziados de conteúdo, mas eu não sou
político nem tenho aspirações a sê-lo. Posso dar-me ao luxo de ser (quiçá
apenas parecer) um tremendo pessimista. O pessimismo não é simpático e por isso
não atrai votos. E sofre ainda do grave mal que é a capacidade de acelerar o
processo que critica. Mas neste caso o optimismo também não impede o desfecho,
apenas o vai adiando, porque, aliás, "resistir é preciso". "Só saio daqui
arrastado à força", "Enquanto há vida há esperança", "Isto
não pode morrer", … são tudo frases
que apelam ao sentimento. Mas o xisto e o granito são duros, os calhaus
improdutivos, a água é cada vez mais escassa e já passa contaminada com a
química da indústria que vive da única matéria-prima existente… até o ar é
mal-cheiroso, por causa dessa mesma química que sai das chaminés… vieram os
fogos e os poucos turistas — pobre miragem salvadora… — foram embora assustados quase todos, porque
só resta cinza numa paisagem enegrecida.
Olha-se para o mapa das áreas ardidas e parece que até o vento foi cúmplice. Os
fogos vieram lá de longe, foram alastrando em leque, alargando e espalhando as
frentes, até se encontrarem todos junto ao rio, chegando a transpô-lo, a avisar
esta outra área de que também não está a salvo.
Optimismo?...